domingo, 5 de junho de 2005

Sobre ser um preso político em 2005

Ou: "Nada como uma ditadura disfarçada de democracia".

Isso que eu vou escrever pode parecer altamente extrema-esquerda, mas não é o caso. Vou ver se me lembro de tudo. Basicamente, estávamos eu, mais os colegas de curso Samuca, Tcharles, Rodrigo, Thiago e PH filmando um documentário sobre a violência urbana (devidamente apoiado por professoras como Cláudia Aguiyrre, documentarista e vegetariana) e obviamente envolvendo as manifestações contra os aumentos nas tarifas de ônibus, lá pelas nove e pouca da noite. A essa altura já tinham detonado o terminal central e parte de alguns lugares na Praça XV. Num dado momento, o pessoal se reuniu novamente na frente do terminal para decidirem o que iriam fazer. Lucas, um dos cabeças do movimento e que teve, segundo consta, atitudes suspeitas desde a terça-feira, resolveu incitar a galera pra ir até a prefeitura pra mijar lá, em resposta à declaração do prefeito Dário Berger, que disse que "ninguém vai fazer xixi no meu pé" e "se alguém chegar na ponte, pode descer o cacete" ou coisa que o valha. E lá fomos nós, acompanhando a multidão, filmando tudo.

Foi aí que eu e os três primeiros citados lá em cima resolvemos subir na sacadinha de um hotel pra filmar tudo. Pedimos autorização pra filmar, subimos e ficamos lá. Enquanto a multidão fugia a gritos de "filha da puta! Filha da puta", a tropa de choque arremessava bombas de efeito moral. Uma delas explodiu ao nosso lado, corremos pra nos proteger e os caras nos pegaram indefesos. Não corremos. Não devíamos e não devemos nada a ninguém. Sabemos que somos inocentes. E lá estavam os policiais, mandando a gente ficar ajoelhado de frente pra parede, sendo insultados até não poder mais. Nos colocaram num micro-ônibus com mais umas quinze pessoas, mais ou menos, e nos levaram pra Central de Polícia, da rua Osmar Cunha. Lá, acabamos conhecendo figuras como o Edson, que agora já ganhou o apelido de Professor (preso ao sair da aula de matemática que acabara de dar), o outro Lucas (pego por apontar um homem sangrando para um cinegrafista), Guilherme (que levou chute na cabeça e cacetada nas costas), Pablo e Fábio (dois dos poucos presos que estavam na manifestação, ainda que pacificamente), três garotas, Tiago (um dos cabeças da União Catarinense dos Estudantes, que apoiava uma manifestação pacífica)... enfim. Desculpem-me - mesmo - os outros por não me lembrar de vocês, mas sintam-se incluídos aqui.

Lá, acabamos ficando amigos. Todos os dezesseis presos arbitrariamente, sem nenhuma prova concreta de nossa suposta participação nos atos de vandalismo. Um dos próprios policiais que nos prenderam chegou a dizer que "nós temos que levar alguém". Ou seja, tornamo-nos bodes expiatórios. Culparam-nos como se apenas nós dezesseis fôssemos capazes de causar a destruição da cidade inteira como ocorreu. Não pararam pra prestar atenção no fato de que os vândalos que depredaram o centro de Floripa eram os caras que estavam mascarados, usando até capacetes. E nós? Sequer fugimos. A polícia nos prendeu para botar medo na cabeça dos outros manifestantes, ainda mais estando nós junto do presidente da UCE. Por isso, presos políticos. Simplesmente.

Então ficamos a noite inteira na delegacia. Quem conseguiu dormir o fez por menos de uma hora. Informações contraditórias chegavam a nós a todo momento, ninguém sabia o que iria acontecer, mas sabíamos que a Ordem dos Advogados do Brasil estava do nosso lado e brigaram pela gente. Nossos depoimentos duraram a manhã inteira e nessa hora os próprios policiais que apareciam de vez em quando para cuidar da gente no porão da Central sabiam que nós não fizemos porra nenhuma.

A partir daí, os advogados disseram que até as quatro horas da tarde já teríamos uma resposta sobre a apreciação do caso pelo juiz. E a tensão rolando, mais do que nunca. A essa altura, quase todo mundo já tinha tido seu ataque nervoso particular e desesperado. Foi quando começou a sair na imprensa reportagens acusando a gente. Graças ao apoio da galera que ficou na frente da Central, em especial do PH e seu sermão ético contra os jornalistas sacanas, pouco a pouco a mídia foi vendo como era a coisa de verdade, e da caloura de cinema e figurinha carimbada Mitzi Evelyn.

Chegando lá pelas três da tarde, os caras levaram todos os nossos pertences, deixando-nos apenas com a roupa do corpo presos numa cela. E os advogados dizendo que nós seríamos transferidos para a penitenciária, mas para um local separado dos outros presidiários, um lugar especial. Lá fora, o lobby do PH era pra que a gente ficasse na delegacia o maior tempo possível. Mas eis que chega o camburão.

Caralho, o camburão é o inferno em quatro rodas. Você fica sem ver nada, quase sem respirar (o Guilherme chegou a desmaiar lá dentro), sem saber direito onde está, apenas ouvindo as sirenes (fomos aparentemente escoltados), e o veículo ainda balança muito.

Lembram-se do "local especial" que teríamos? Pois é. Fomos tratados como se fôssemos os piores estupradores possíveis. Mais um tempo ajoelhados de frente pra parede, deram uma geral e separaram todos. Cada um pra uma cela na ala que, segundo um carcereiro gente fina que nós encontramos mais tarde, é a segunda pior de toda a penitenciária. Eu, por exemplo, estava na mesma cela de um traficante que foi preso com uma .12, mais umas duas armas e cinqüenta quilos de maconha, apelidado de Cantor. O Samuel estava junto com um assassino.

Cerca de três horas depois, descobrimos que alguém pagou a nossa fiança e fomos libertos. Saímos abraçados do prédio da penitenciária e, na frente do local, uma pequena multidão de parentes, colegas, outras vítimas dessa prisão surreal (as garotas, que foram pra outro lugar). Não me agüentei e tive que soltar um grito desgraçado, que já estava entalado na minha garganta desde a tarde. De lá, o pessoal do cinema foi direto para o Centro Integrado de Cultura, onde estava rolando o FAM, Festival Audiovisual Mercosul, e quando descobrimos que um dos caras que discursou lá na abertura falou sobre a gente e fomos aplaudidos de pé (isso me arrepia até agora).

E é assim que você mantém a população sob seu controle. Prendendo inocentes pra evitar manifestações. É a repressão ditatorial em plenos anos 2000. Os vândalos de verdade, que supostamente fazem parte do movimento, não estavam lá. Aproveito aqui pra agradecer, mas agradecer pra caralho, todo o apoio de todo mundo que estava lá fora, todos que ajudaram na vaquinha pra pagar a fiança. Obrigado mesmo.

Porra, que coisa gigantesca. Se eu me lembrar de mais coisa, eu posto aqui outra hora.

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